No último mês de abril o Gabinete do Representante dos Estados Unidos para o Comércio (The Office of the United States Trade Representative) liberou o Relatório Especial Anual 301/2023 Sobre a Proteção e Defesa da Propriedade Intelectual (Relatório 301), um documento emitido anualmente pelo USTR e que retrata a adequação e eficácia da proteção aos detentores dos direitos de propriedade intelectual (PI) norte-americanos por parte dos países parceiros comerciais.
O objetivo do relatório é incentivar e manter ambientes propícios à inovação, incluindo proteção e aplicação eficazes da PI, em mercados de todo o mundo, que beneficiam não só os exportadores dos EUA, mas também as indústrias nacionais com utilização intensiva de PI.
O USTR, visando facilitar a gestão do relatório, criou a chamada Watch List, que lista os países com problemas específicos no que diz respeito à proteção, aplicação ou acesso ao mercado da PI para os cidadãos e empresas norte-americanos que dependem diretamente dessa proteção, oferecendo sugestões de desenvolvimento de planos de ação para cada país identificado.
O Brasil, infelizmente, está, mais uma vez, listado na Watch List, e, segundo o relatório de 2023, sua permanência se deu, principalmente, em razão do grande volume de conteúdo e mercadoria falsificada comercializada no país — a “famosa” pirataria.
A famosa rua 25 de Março, no centro de São Paulo, e seus arredores, foram mencionados como uma região que merece especial atenção. Apesar de reconhecer que o número de ações de repressão cresceu nessa área nos últimos anos, o relatório enfatiza a carência de atuações mais efetivas para a redução significativa da pirataria na região, que foi inclusive listada no Relatório de 2022 dos EUA de Mercados Notórios pela Contrafação e Pirataria.
Além disso, outro cenário preocupante na visão dos EUA é o volume expressivo de produtos e serviços falsificados oferecidos online. Na perspectiva dos detentores de direitos de propriedade intelectual norte-americanos, a pirataria online, a utilização de aparelhos de TV Box, o roubo de sinais, a utilização de softwares não licenciados, bem como o volume global de produtos contrafeitos disponíveis online e comercializados através dos marketplaces, continuam a ser obstáculos significativos à adoção de canais legítimos de distribuição de conteúdo.
O relatório também menciona a preocupação com as regiões que continuam a ser pontos de entrada significativos para as mercadorias ilegais, com destaque para o Porto de Santos e a Tríplice Fronteira (Brasil, Paraguai e Argentina).
Considerando que grande parcela desses produtos são oriundos de outros países e ingressam ilegalmente em solo brasileiro, na visão do relatório norte-americano em análise, uma das principais questões que atrapalham as medidas de combate à pirataria seria a suposta falta de outorga legal para as autoridades aduaneiras apreenderem, de ofício, mercadorias falsificadas quando da inspeção.
Além da falta de aplicação de sanções gravosas, e de fato inibidoras, atribuídas aos importadores de produtos ilegais, outro ponto mencionado foi o número insuficiente de funcionários aduaneiros alocados na fronteira para realização da necessária fiscalização, não obstante a morosidade dos processos judiciais.
Por fim, o relatório também aborda a perspectiva dos titulares de direitos, que mencionam dificuldades na obtenção de informações sobre as mercadorias contrafeitas apreendidas, o que dificulta a realização de investigações mais aprofundadas sobre as redes e fontes de distribuição das contrafações.
A preocupação apresentada no relatório é corroborada pelo resultado do relatório anual do Fórum Nacional Contra a Pirataria e Ilegalidade (FNCP), o qual apurou uma perda do mercado nacional de R$ 410 bilhões em 2022 em virtude do comércio ilegal (incluindo-se aqui produtos contrafeitos). Em 2021 a perda estimada foi de R$ 300 bilhões e em 2020, de R$ 287 bilhões, o que demonstra um grande crescimento do mercado ilegal ano após ano.
O que se verifica deste cenário é que, apesar da crescente atuação das autoridades brasileiras no combate à pirataria, buscando cada vez mais a proteção aos direitos de propriedade intelectual, ainda se constata um número alto de contrafação no país, seja online ou offline, o que demonstra a necessidade latente de se fortalecer ainda mais as atividades de repressão.
Como exemplo dessa carência de fortalecimento, menciona-se a falta de regulamentação específica do procedimento de retenção aduaneira, o que faz com que a autoridade alfandegária de cada terminal portuário adote um certo procedimento: alguns exigindo o ingresso de ação judicial para garantir a apreensão dos produtos retidos e outros apontando como suficiente a apresentação do laudo atestando a contrafação. Essa falta de padronização e dúvida de qual procedimento adotar acaba por prejudicar a execução das retenções de ofício, tal qual retratado pelo Relatório 301.
Outro exemplo que corrobora com o cenário atual de insuficiência de atuações mais efetivas é o fato de o volume de itens falsificados comercializados através dos marketplaces no Brasil ainda ser muito alto. Conforme retratado pelo Relatório 301, a grande maioria dos e-commerces aderiu ao Guia de Boas Práticas do Conselho Nacional de Combate à Pirataria de 2020. No entanto, a livre oferta de produtos contrafeitos online no Brasil permanece elevada, sendo um dos motivos para a manutenção do nosso país no Relatório de 2023.
O Conselho Nacional de Combate à Pirataria (CNCP), instaurado em 2004, por meio do Decreto nº 5.244, de 14 de outubro de 2004, possui a atribuição de estudar e propor ações voltadas ao combate à pirataria, contrabando e sonegação fiscal e violação de direitos de propriedade intelectual, além da elaboração e manutenção do Plano Nacional de Combate à Pirataria, bem como o papel de articular a integração com agências governamentais e o setor privado, tudo isso em prol da defesa dos direitos de propriedade intelectual.
O Relatório 301 não deixa de reconhecer, contudo, a atuação crescente do Brasil no combate à pirataria, mencionando algumas ações realizadas em 2022 na região da 25 de Março, como a operação “Krampus”, em novembro de 2022, que foi a maior operação já realizada pela Receita Federal no combate à venda de produtos introduzidos ilegalmente no país até hoje, resultando na apreensão de 2.000 toneladas de itens contrafeitos estimados em mais de R$ 1,2 bilhão.
Foram elogiadas, no relatório, as atuações das autoridades brasileiras em campanhas contra pirataria online, algumas em conjunto com autoridades dos EUA, incluindo ações de repressão centradas no combate aos dispositivos de TV Box, assim como atuações contra a pirataria desportiva durante as semanas que antecederam a Copa do Mundo de 2022, o combate à pirataria de videogames e oferta de produtos piratarias no metaverso.
Apesar de sua efetividade não ter gerado o resultado prático esperado, o fato de grande parte dos e-commerces atuantes no país ter aderido ao Guia de Boas Práticas para Marketplaces do CNCP, foi reconhecido como ponto positivo da atuação do Brasil no enfrentamento da pirataria online.
Para além dos desempenhos positivos do Brasil apresentados no Relatório 301, cabe aqui mencionar também a atuação da Câmara Municipal de São Paulo, a qual, em atenção à relevância que o comércio de produtos ilegais assume em São Paulo, instaurou uma comissão parlamentar de inquérito com o fim de apurar os fatos relacionados à pirataria na cidade. A conclusão da CPI foi que a prática ilegal ultrapassa as fronteiras da cidade, estado e até mesmo do país, necessitando de uma atuação conjunta a nível nacional e internacional.
Foram apresentadas diversas sugestões de ação, destacando-se a de criação de órgão público de inteligência, articulação e formulação de políticas de combate à pirataria, além da criação de órgãos específicos nas subprefeituras onde há a maior incidência de comercialização de produtos falsificados.
Outro ponto que merece reconhecimento, são os avanços das comissões de estudo do CNCP, que graças a integração entre representantes da sociedade civil organizada e autoridades atuantes diretamente no combate à pirataria, têm desenvolvido várias campanhas de enfrentamento a esses ilícitos com verdadeiras forças-tarefas em todo o território nacional.
Com base em todas as informações apresentadas, fica evidente que o relatório não apenas retrata a preocupação geral dos investidores estrangeiros em relação à proteção dos direitos de propriedade intelectual no Brasil, mas também oferece sugestões de ações e mudanças significativas que merecem especial atenção por parte das autoridades brasileiras.
O documento evidencia que um ambiente propício à proteção dos direitos de propriedade intelectual promove diretamente o aumento dos investimentos estrangeiros e nacionais em futuras inovações no Brasil, deixando claro o interesse norte-americano em auxiliar o Brasil no desenvolvimento de um ambiente mais seguro à PI.
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Referências
2022 Review of Notorious Markets for Counterfeiting and Piracy (Relatório de Mercados Notórios por Contrafação e Pirataria 2022). Disponível em: 2022 Notorious Markets List (final).pdf (ustr.gov). Acesso em 22/05/2023.
Brasil perde R$ 410 bilhões para o mercado ilegal em 2022. Disponível em: Brasil perde R$ 410 bilhões para o mercado ilegal em 2022 – Forbes, 2023. Acesso em 22/05/2023.
Conselho Nacional de Combate à Pirataria e aos Delitos Contra a Propriedade Intelectual. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/sua-protecao/combate-a-pirataria. Acesso em 13/06/2023.
Encerramento da CPI da pirataria da cidade de São Paulo. Disponível em: Encerramento da CPI da pirataria da cidade de São Paulo – Migalhas, 2023. Acesso em 22/05/2023.
Guia: Boas práticas e orientações às plataformas de comércio eletrônico para implementação de medidas de combate à venda de produtos piratas, contrabandeados ou, de qualquer modo, em violação à propriedade intelectual, 2020. Disponível em: Guia – boas práticas e orientações às plataformas de comércio eletrônico (www.gov.br). Acesso em 22/05/2023.
Pirataria: prejuízo do Brasil com comércio ilegal ultrapassa R$ 280 bilhões. Disponível em: Pirataria: prejuízo do Brasil com comércio ilegal ultrapassa R$ 280 bilhões (cnnbrasil.com.br), 2021. Acesso em 22/05/2023.
Receita Federal apreende mais de dois mil toneladas de mercadorias irregulares durante a Operação Krampus. Disponível em: Receita Federal apreende mais de dois mil toneladas de mercadorias irregulares durante a Operação Krampus — Receita Federal (www.gov.br), 2022. Acesso em 22/05/2023.