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28 de dezembro de 2020

A existência de Direito Autoral decorrente de fontes ilícitas

Artigo de Victor André Santos e Lozran Brendeson, publicado no Portal Intelectual
O objetivo deste breve artigo é deliberar sobre a existência de direitos morais e de direitos patrimoniais de autor quando a origem da obra se deu por uma fonte ilícita, ou seja, contrária ao sistema jurídico. Neste contexto, urge o art. 11º da Lei de Direitos Autorais, Lei nº 9.610/98, que traz o autor como a pessoa física, podendo ser pessoa jurídica nos casos previstos em Lei, criadora da obra literária, artística ou científica. Assim, conforme a redação legal, autor é quem cria a obra, por isso receberá a tutela de proteção adequada, porém não há nenhuma menção em lei sobre como o Direito deve agir quando o autor se utilizar de meios ilícitos para a criação da obra, motivo pelo qual este tema será discutido abaixo.
Antes da análise da problemática, cumpre salientar que a proteção aos direitos autorais independe de registro, com base na lei em comento, art. 18, e na Convenção de Berna, art. 5. Portanto, não há necessidade de nenhuma formalidade, no que tange a um tipo de cadastro, para os direitos de autor nascer; ou seja, basta a própria criação, expressa por qualquer meio ou fixada em qualquer suporte, tangível ou intangível.
Uma vez criada a obra, então, passa-se a existir direitos patrimoniais e morais de autor, estes elencados no capítulo II e aqueles no capítulo III da Lei de Direitos Autorais, conforme aponta a teoria dualista de Henrique Gandelman. Deste modo, esclarece-se que os direitos patrimoniais são responsáveis pela possibilidade de o autor realizar o uso econômico da obra, por meio da transmissão, venda, cessão, distribuição, reprodução, etc., enquanto que os direitos morais permitem que o autor preserve um vínculo personalíssimo com a sua obra, assim permanecendo assegurados os direitos de reivindicar autoria (Direito à autoria), a oposição em possíveis alterações (Direito à integridade), o de não divulgar ou publicar a obra (Direito à inédito), o de retirar a obra de circulação, bem como o direito ao acesso à obra.
O art. 24, I, da lei ora em análise, dispõe que o autor tem o direito de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra, porém se nota que este direito abre a possibilidade de valorizar condutas ilícitas, como garantir direitos morais e patrimoniais a uma pessoa que furta a máquina fotográfica de outrem, tira excelentes fotos, e requer a proteção das mesmas; ou garantir a proteção de alguma obra criada em um licenciamento irregular de software, que é um crime, visto que se trata de violação à direitos autorais.
Como, portanto, o direito deve analisar esta proteção quando os meios empregados para sua concepção são ilícitos? Com base na legislação, há uma resposta, isto é, o autor é quem cria, assim, independentemente de um ilícito prévio em relação à criação, ele ou ela possui direitos sobre a obra.
Neste sentido, embora a criação da já citada Lei 9.610/98 tenha corroborado em avanços na proteção dos direitos autorais, é evidente que diversos pontos ficaram obscuros, e este é um deles. A questão em pauta torna-se nevrálgica diante da possibilidade do Ordenamento Jurídico não apenas garantir a proteção jurídica da obra, mas também preservar direitos sob condutas ilícitas. Inclusive, uma consequência desta tutela seria a impunidade, em que os fins justificariam os meios, dado que se alguém cria uma obra de extenso valor patrimonial através de uma conduta ilícita cuja sanção cível ou penal é branda, então justificaria a própria ilicitude.
Entretanto, diante da ausência normativa quanto ao tema, cumpre analisar como o Estado deveria agir diante de situações que envolvem o presente assunto. Por lei, notoriamente, os direitos morais de autor devem ser concedidos, dada que a legislação é clara em relação a este assunto, principalmente porque os mesmos são inalienáveis e irrenunciáveis, de acordo com o art. 27 da lei supracitada, porém os direitos patrimoniais podem ser assunto de deliberação, uma vez que são alienáveis e podem ser concedidos ao titular ou proprietário do meio violado, caso o Estado, em juízo, decida.
Para facilitar o entendimento do presente leitor, imagine uma situação em que Carlos, um fotógrafo profissional, participa de uma grande festa familiar e, utilizando-se sua posição de confiança e conhecimento sobre onde se encontravam os bens da família, furta uma câmera de primeira linha, de titularidade de seu tio José. Após alguns meses, Carlos acaba encontrando seu tio em um hotel e por descuido acaba solicitando auxílio do mesmo com as malas, e, neste momento, sem Carlos tomar ciência, José verifica que a câmera que havia sido furtada se encontrava em uma das mochilas de Carlos. Indignado com a situação, não comunicando ao sobrinho, José vai a uma delegacia pretendendo prestar queixa contra o sobrinho, requerendo sobretudo os direitos sobre as fotos realizadas com sua câmera, já que o infrator acabou ganhando prêmios e acumulando fortuna com os direitos autorais das fotografias realizadas com o objeto furtado. Em esclarecimento, o delegado esclarece que embora a conduta de Carlos seja tipificada pelo artigo 155, do Código Penal, mais especificamente no parágrafo 4º, inciso ||, não há clareza na lei sobre os direitos autorais em relação às imagens realizadas pelo infrator. Assim, todos os direitos patrimoniais, embora obtidos de forma ilícita, continuam ligados a Carlos, não sendo garantido nenhum direito sobre as imagens para José, o legítimo titular da câmera fotográfica.
Em adição, suponha que uma empresa XYZ, detentora de direitos do software fictício FastSites, que é especializado na criação de sites de forma automatizada, toma conhecimento, por meio de uma denúncia, da utilização irregular do seu software por parte da empresa ABC. Após uma longa investigação nos sites produzidos pela possível infratora, foi constatado por meio de diversas provas a utilização irregular por parte da empresa ABC. Na sequência, a empresa XYZ demanda em juízo contra a infratora, requerendo o pagamento de multa por violação de direitos autorais, bem como o direito de manutenção nos sites já comercializados pela infratora. Deste modo, embora a conduta da empresa ABC seja tipificada pelo artigo 184 do Código Penal, a garantia de manutenção dos bens comercializados de forma irregular não fica esclarecida nos textos legais.
Portanto, diante do titular ou proprietário do meio violado, é injusto o Estado garantir não apenas os direitos morais, mas também os direitos patrimoniais ao autor que é, concomitantemente, um infrator. Aquele se vê, assim, sendo violado duas vezes: uma vez pelo próprio infrator e outra vez pelo Estado, que garante plena proteção aos direitos autorais do infrator.
Considerando que o sistema jurídico brasileiro, em função da Constituição Federal de 1998, presta devida atenção a dignidade da pessoa humana e veda, expressamente, meios que fomentam a injustiça e o enriquecimento ilícito, seria ilógico não questionar a proteção legal da Lei de Direitos Autorais frente a esta matéria.
A devida proteção aos direitos de propriedade intelectual é imensuravelmente importante para qualquer país, principalmente porque esta matéria está diretamente relacionada ao desenvolvimento econômico e social de um Estado, em que o incentivo a criação de marcas, patentes e obras pode não apenas enriquecer os autores, mas também toda a sociedade. Não à toa os países classificados como desenvolvidos são aqueles que têm as melhores políticas de incentivo a criação de obras intelectuais.
E é diante deste papel importante na sociedade que o presente tema deve ser devidamente analisado, uma vez que o infrator não deveria ser recompensado pelo seu ato antijurídico. Seguindo a previsão legal, é até compreensível que o Estado garanta ao infrator os direitos morais, visto que ele ou ela é o autor da obra, mas os direitos patrimoniais devem ser questionados, cabendo ao Estado decidir quem irá usufruir do uso econômico da obra, principalmente para evitar o incentivo a prática de condutas ilícitas e o próprio enriquecimento ilícito.
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