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18 de julho de 2019

MP da Liberdade Econômica: Much ado about nothing? Questões que não restaram resolvidas e pontos de atenção quanto às alterações legislativas realizadas

Publicada no dia 30 de abril de 2019 para marcar os 100 dias do atual governo, a Medida Provisória nº 881, conhecida como MP da Liberdade Econômica, vem sendo alvo de grande debate entre juristas[1], não só em vista de normas que alteram dispositivos importantes do Código Civil e de outras normas importantes, como a Lei das S/A e a Lei de Falências e Recuperação de Empresas, como também em virtude da técnica legislativa adotada, a qual faz com que dispositivos importantes fiquem pendentes de regulamentação. Além de refletir sobre esses pontos, este breve artigo pretende abordar um outro, que nos parece central no processo de estímulo ao empreendedorismo e sem o qual os bons propósitos da MP podem naufragar quando confrontados com a realidade: o fato de que a MP não lida de forma clara e definitiva com os entraves burocráticos gerados pela competência concorrente da União, Estados e Municípios para legislar em diversas matérias.
 
Qual o objetivo da MP 881, de 30 de abril de 2019 (MP da Liberdade Econômica)?
Conforme exposição de motivos[2] e artigo 1º da MP da Liberdade Econômica[3], o objetivo da referida norma é regulamentar os artigos 1º, inciso IV; 170, parágrafo único e 174, caput da Constituição, que tratam do princípio da livre iniciativa. Para tanto, a MP tem a seguinte estrutura:
• Enunciação de princípios norteadores de sua aplicação (artigo 2º);
• Declaração de direitos quanto à liberdade econômica (artigo 3º);
• Instituição de garantias de livre iniciativa (artigo 4º);
• Instituição da obrigação de análise de impacto regulatório antes da edição de normas (artigo 5º);
• Disposições finais (artigos 6º e seguintes), que trazem diversas alterações legislativas, inclusive com a modificação de normas referentes à desconsideração de personalidade jurídica, sociedades limitadas e fundos de investimento.
De acordo com a exposição de motivos, a estrutura acima foi pensada para “empoderar o Particular e expandir sua proteção contra a intervenção estatual, ao invés de simplesmente almejar a redução de processos que, de tão complexos, somente o mapeamento seria desgastante e indigno”. Ademais, material elaborado pelo Ministério da Economia[4] aponta como problemas a serem resolvidos pela MP:
• Alto desemprego;
• Estagnação econômica;
• Recuperação lenta da recessão;
• Uma das piores cargas regulatórias e burocráticas do mundo;
• Alta insegurança jurídica aos mais vulneráveis em atividades econômicas;
• Má reputação do governo;
• Altos níveis de corrupção.
A fim de combater esses problemas e atingir os seus objetivos, a MP teria adotado três premissas: igualdade de oportunidade para micros e pequenos empreendedores, foco do Estado nas situações de risco e respeito ao federalismo.
 
Dos princípios norteadores da MP: realmente temos novidades?
Partindo dessas premissas, a MP como seus princípios interpretativos: a presunção de liberdade no exercício das atividades econômicas, a presunção de boa-fé do particular e a intervenção subsidiária, mínima e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas. A menção a esses princípios não traz em si inovação.
 
Com efeito, com relação à presunção de boa-fé, a mesma não só reflete um dos brocardos jurídicos mais antigos, como serviu de premissa ao STJ para a fixação de tese quanto aos requisitos para reconhecimento de fraude à execução[5]. Ademais, a boa-fé já havia sido positivada em nosso ordenamento através do artigo 422 do Código Civil, promulgado em 2002.
 
Com relação à presunção de liberdade no exercício das atividades econômicas, além do próprio princípio da livre iniciativa já citado, o artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal estabelece que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude lei.
 
Por fim, quanto à intervenção excepcional do Estado, é certo que o artigo 173 da Constituição Federal já dispõe que
 
A repetição de princípios que já estão consagrados na Constituição Federal e na legislação infraconstitucional se dá em outros dispositivos da MP, notadamente no artigo 3º, o qual, por exemplo, declara o direito à isonomia na aplicação de normas (a igualdade é princípio garantido não só no artigo 5º, caput da Constituição Federal como na Lei do Processo Administrativo Federal e no Código de Processo Civil) e proíbe a fixação de preços pelo Estado em mercados não-regulados (como é cediço, não vivemos em economia planificada cujos preços são tabelados pelo Estado, sendo certo que mesmo em mercados regulados, como o de medicamentos, os players possuem certa liberdade na fixação de preços obedecidos os parâmetros legais).
 
Da técnica legislativa adotada: falta de metas claras a serem perseguidas pelo Estado para a consecução dos objetivos da MP, bem como de sanções ao Estado pela violação desses direitos. Dispositivos que para terem plena eficácia dependem de regulamento.

Feitas essas observações sobre os princípios norteadores da MP, salta aos olhos que, embora enuncie diversos direitos e garantias do particular, a MP não disponha de forma objetiva sobre os meios para a concretização de tais direitos, com o estabelecimento de regras claras sobre as obrigações a serem desempenhadas pelo Estado para a consecução dos objetivos colocados pela MP.
 
Para ilustrar este tópico, partimos de um exemplo relacionado a dois dos objetivos declarados da MP, que são melhorar a segurança jurídica e reduzir a burocracia. Um dos principais entraves burocráticos enfrentados por agentes econômicos no Brasil é identificar dentro da verdadeira colcha de retalhos jurídica quais as normas aplicáveis a uma determinada relação jurídica e quais delas estão efetivamente em vigor – especialmente se estivermos falando de regulamentos emitidos por autarquias e demais entes da administração indireta. Além da insegurança jurídica causada pela situação, a correta identificação das normas aplicáveis implica em custos de transação[6]. Uma obrigação simples, que reduziria a burocracia e aumentaria a segurança jurídica seria obrigação cada ente da Administração Pública a publicar em local de fácil acesso e em destaque em seu website um compilado de normas jurídicas aplicáveis à sua atividade, com índice onomástico e atualização anual.
 
Tampouco há sanção clara a ser aplicável caso o Estado viole os direitos e garantias estabelecidos na MP. É certo que o artigo 37 da Constituição Federal estabelece a responsabilidade objetiva do Estado por atos ilícitos cometidos por seus agentes. Porém, para obter a responsabilização do Estado o administrado, na maior parte dos casos, deve se valer do Judiciário – o que, além de implicar em despesas, muitas vezes leva tempo considerável, com pouca efetividade ao final[7]. Seria oportuno criar mecanismos administrativos eficazes para solução de conflitos com o Estado.
 
Outro ponto de atenção quanto à técnica legislativa adotada é o excesso de normas de eficácia contida, cujo conteúdo e aplicabilidade dependem de definição em regulamento pela “autoridade competente”. Um dos conceitos que ficaram para regulamentação foi a definição de baixo risco
 
Por fim, no que respeita às garantias enunciadas no artigo 4º da MP, a redação vaga adotada em alguns dispositivos acabou por estabelecer limitações que parecem conflitar com o regime jurídico ora vigente. Um exemplo é o inciso IX, que estabelece que a Administração Pública, deverá evitar o “abuso do poder regulatório”, “exceto se em estrito cumprimento a previsão explícita em lei” não poderá “restringir o uso e o exercício da publicidade e propaganda sobre um setor econômico, ressalvadas as hipóteses expressamente vedadas em lei”
 
Neste passo, há diversos setores, como medicamentos, bebidas alcóolicas e fumígeros, em que além de leis federais impondo balizas à publicidade de tais produtos, existem diversas regulamentações de entes de Administração indireta e mesmo autorregulamentações criadas pelos próprios publicitários, como aquelas constantes das regulamentações do CONAR – Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária. Todas essas restrições visam a garantir outros interesses constitucionalmente protegidos, como o direito à saúde, sendo certo que, no caso específico da autorregulamentação do CONAR, os próprios players do mercado têm por hábito cumprir voluntariamente as normas aplicáveis.
 
Da análise de impacto regulatório
Outro dispositivo que deixou em aberto questões relevantes para o particular foi aquele que trata da análise de impacto regulatório (artigo 5º da MP). A necessidade de se considerar o impacto das decisões da Administração Pública na esfera jurídica dos particulares não é em si uma novidade, pois já havia sido objeto de diversos dispositivos da Lei nº 13.655/2018, que introduziu os artigos 20 e seguintes à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
 
Assim, o referido artigo 5º poderia ter aprofundado melhor a questão e estabelecido um processo de desenho de políticas públicas com base em análises de impacto regulatório, determinando inclusive como os interessados poderiam participar deste processo. Além de não colocar balizas objetivas para tal análise, deixando a cargo de regulamento como deverá ser implementada tal norma, não há previsão de avaliação do impacto de políticas públicas após a sua adoção. Note-se que é prática em outros países desenvolver mecanismos para avaliar o impacto de políticas públicas após a sua adoção. Um exemplo deste mecanismo foi a adoção do GDPR (General Data Protection Regulation) pela União Europeia, em virtude de avaliações e recomendações realizadas por grupo de trabalho estabelecido em virtude do artigo 29 da Diretiva de Proteção de Dados Pessoais de 1995 (Diretiva 95/46/EC). Entendemos que o Brasil muito se beneficiaria da avaliação a posteriori do impacto de novas regulações.
 
Das alterações legislativas
A MP finaliza alterando ou revogando diversos dispositivos legais. Focaremos aqui nas alterações ao Código Civil, onde as modificações introduzidas podem ter mais repercussões práticas.
 
Embora algumas alterações sejam mais cosméticas do que práticas (vide a modificação aos artigos 421 e 423 Código Civil), outras alterações foram mais dramáticas, como relação aos artigos 50 e 480, bem como o parágrafo único do artigo 1.052.
 
Com efeito, embora a redação original do artigo 50 do Código Civil, que trata de desconsideração da personalidade jurídica em caso de abuso, fosse sucinto, aos poucos foi sendo construída jurisprudência sobre o assunto, sendo regulado em outras situações como, quanto ao procedimento, pelos artigos 133 e seguintes do atual Código de Processo Civil. Embora a justificativa para a inclusão dos parágrafos 1º ao 5º seja o de supostamente positivar entendimento do STJ, é certo que as situações concretas são bastante dinâmicas e, sendo a desconsideração da personalidade jurídica uma importante ferramenta de recuperação de crédito, é certo que a inclusão dos novos dispositivos deveria ter sido precedida por amplo debate público.
 
No que respeita ao artigo 480 do Código Civil (que trata da resolução de contratos por onerosidade excessiva), os dispositivos introduzidos parecem não dialogar com o artigo 478, que estabelece as bases para a aplicação da chamada Teoria da Imprevisão – que longe de ser uma novidade no direito brasileiro, foi objeto de precioso livro de Arnoldo Medeiros da Fonseca datado de 1958. Da mesma forma, não havia no regime anterior qualquer presunção de hipossuficiência ou vulnerabilidade de empresário, sendo certo que as presunções de hipossuficiência do Código de Defesa do Consumidor só se aplicam se o empresário puder ser qualificado como consumidor final nos termos do artigo 2º daquela norma ou puder ser equiparado a consumidor na situação concreta.
 
Por fim, a possibilidade de criação de sociedade empresárias de responsabilidade limitada formadas por uma única pessoa, conforme parágrafo único do artigo 1.052, potencialmente cria uma superposição entre esse instituto e as empresas individuais de responsabilidade limitada (EIRELIs), reguladas pelo artigo 980-A do Código Civil e que prevê a possibilidade de se estabelecer empresas constituídas
 
Da grande questão em aberto: quem é responsável pela regulamentação quando há competência concorrente entre os entes federativos ou aparente superposição de competências entre diferentes órgãos de um mesmo ente federativo.
Importante questão que parece não ter sido resolvida pela MP é a sobreposição de competências entre os entes federativos, bem como de casos de aparente superposição de competências entre diferentes órgãos de um mesmo ente federativo para regulamentar determinada atividade. Apesar de vivermos em uma federação na qual a União tem competência privativa para legislar sobre um grande número de questões (vide artigo 22 da Constituição Federal), há competências que são comuns (artigo 23 da Constituição Federal) ou concorrentes (artigo 24 da Constituição Federal) entre os entes federativos. Essa é uma verdadeira porta aberta para a insegurança jurídica, especialmente em virtude do artigo 24 da Constituição Federal não ter sido ainda regulamentado por lei.
 
Acrescente-se que também não são raros os casos em que dois órgãos distintos de um mesmo ente federativo se entendem competentes para regulamentar uma determinada questão, estabelecendo normas que nem sempre são harmônicas entre si. Um exemplo dessa situação foi o estabelecimento por meio da Lei nº 10.196/2001 (a qual, por sua vez, trata-se de uma conversão de medida provisória) da anuência prévia pela ANVISA para a concessão de patentes na área farmacêutica. Durante mais de uma década, a ANVISA e o INPI – Instituto Nacional da Propriedade Industrial se digladiaram para determinar se a ANVISA poderia fazer a análise de requisitos de patenteabilidade ou se ela deveria se cingir a analisar questões de saúde pública, uma vez que a lei que define as competências da agência não inclui a análise de requisitos de patenteabilidade. A questão só foi resolvida com a Portaria Conjunta nº 01/2017, após anos de batalhas judiciais e de significativo atraso na análise de patentes da área farmacêutica. Neste passo, a MP perdeu a oportunidade de estabelecer de forma clara mecanismos administrativos que permitissem ao titular se defender deste tipo de situação sem ter que recorrer ao Judiciário.
 
Conclusão
Por todo o exposto, em que pese a intenção de melhorar o ambiente de negócios no Brasil, a MP da Liberdade Econômica peca em aspectos de técnica legislativa, além de ter perdido a oportunidade de regulamentar questões relevantes para diminuir os entraves burocráticos no Brasil. Ademais, algumas matérias incluídas na MP mereceriam melhor reflexão antes de serem positivadas na nossa legislação, Espera-se que essas questões sejam sanados no trâmite da referida MP no Congresso. 
________________________________________
[1] Vide diversos artigos publicados no periódico jurídico Jota: www.jota.info
[2] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Exm/Exm-MP-881-19.pdf, acesso em 12.06.2019.
[3] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Mpv/mpv881.htm, acesso em 12.06.2019.
[4] Disponível em https://static.poder360.com.br/2019/05/apresentacao-mp-liberdade-economica.pdf, acesso em 12.06.2019.
[5] “[a] presunção de boa-fé é princípio geral de direito universalmente aceito, sendo milenar parêmia: a boa-fé se presume; a má-fé se prova”
(STJ, Resp nº 956.943-PR [Tema 243])
[6] Custos de transação representam o tempo e o dinheiro despendidos pelas partes negociantes para concretizar a transação e que não estão relacionados ao custo de produção propriamente dito. Assim, são custos de transação os tributos, as dificuldades de acesso à informação e as despesas relacionadas à defesa de direitos de propriedade intelectual. SZTAJN, Rachel. Externalidades e custos de transação: a redistribuição de direitos no novo Código Civil. In: Revista de direito privado nº 22, abr-jun 2005, São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 252
[7] Não à toa, o Estado é um dos principais clientes do Judiciário: https://www.gazetadopovo.com.br/justica/estado-congestiona-o-judiciario-no-pais-quem-perde-e-o-cidadao-bkyvzcz1ylmckd5cnu9zuqz13/, acesso em 12.06.2019.
[8] Disponível em http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-51-de-11-de-junho-de-2019-163114755, acesso em 13.06.2019.
 
Fonte: Resenha Legal da Britcham (Julho/2019).
 
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